“Fala-se
em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o
trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à
tentativa autoritária de aplainar as diferenças. [...] Historicamente
habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha
sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de
ninguém.[...] E assim acumulamos nossos ódios --o semelhante torna-se o
inimigo.” (RUFFATO, 2013). Essas palavras são utilizadas pelo escritor Luiz
Ruffato no seu discurso de abertura da Feira do Livro de Frankfurt em 2013. E
são com essas mesmas palavras que podemos refletir sobre o mito da democracia
racial e sobre mais um caso de racismo. A escolhida da vez foi a Etiene Martins, jornalista e publicitária,
vítima de racismo no último dia 4, no “Supermercado Dia” em Belo Horizonte/MG.
Ao chegar ao
supermercado, localizado no centro da capital, Etiene, afirmou que perguntou ao
segurança onde era a entrada do estabelecimento. Ela diz que recebeu uma
resposta em tom agressivo que deveria colocar a bolsa no guarda-volumes. Ao
contestar a entrada de outras pessoas com bolsas dentro do supermercado, Etiene
ouviu que: “é esse tipo de gente que rouba aqui todos os dias”.
A jornalista prestou B.O
e afirma que pretende levar o caso ao Ministério Público. O supermercado “Dia”
lamentou a situação por meio de nota e informou que o segurança não foi
desligado das suas funções. A Polícia Civil está investigando o caso.
Etiene concedeu ao Mídia
Periférica uma entrevista sobre o ocorrido que ganhou grande repercussão nas
redes sociais. Segue na íntegra.
MP:
Além da dívida histórica, nós negros nos deparamos constantemente com discursos
de ódio e ações que só aumentam a ferida que o racismo representa na sociedade.
Qual o seu sentimento diante do ocorrido no supermercado Dia?
Me senti humilhada, mas a revolta sobressaiu de tal
forma que eu não aceitei ser humilhada simplesmente pelas características do
meu fenótipo.
MP:
Você já passou por situações semelhantes?
Não de forma tão direta, mas já aconteceu de
segurança de loja me seguir a ponto de me deixar constrangida.
MP:
“É esse tipo de gente que rouba aqui todos os dias”. Você foi rotulada com essa
característica, o modelo de “gente que rouba”. Diariamente negras e negros são
vítimas desse estereótipo e sofrem situações semelhantes de discriminação
racial. De que modo você associa a contribuição dos discursos produzidos pela
mídia com a disseminação do racismo na sociedade?
Não podemos esquecer que a mídia é o imaginário
branco e elitista propagado e publicitado. Infelizmente a mídia reforça essa
falsa imagem que negro e ladrão são sinônimos.
MP:
Qual a sua percepção sobre o mito da democracia racial e essas questões
seculares, mal resolvidas, que refletem no nosso dia-a-dia enquanto negros, já
que se confunde tolerância racial com democracia racial.
A ideia da democracia racial é o nosso maior
inimigo, pois é esse mito que dissemina a ideia que vivemos em um paraíso
miscigenado. Mas que paraíso é esse em que o negro sempre sai na pior? Eu não chamaria de tolerância, eu vejo como
conveniência para continuar explorando nossa mão de obra. Afinal deixamos de
ser escravizados para sermos explorados.
MP:
Como foi o desfecho da história após o B.O? E que medidas além você pretende
tomar?
Após o B.O. fiz uma representação no Ministério
Público e outra na Policia Civil para que o processo avance. Pretendo processar
o supermercado DIA e o segurança por racismo.
MP:
Sabemos que constantemente várias pessoas são vítimas de racismo. E apesar dos
casos estarem ganhando visibilidade, através da internet, nem todos registram
B.O. Você acredita que a denúncia nas redes sociais é suficiente?
A rede social é uma ótima aliada, mas não substitui
o B.O, se não registramos uma queixa formal acabamos por ser além de vítima,
cumplice desse crime.
MP:
Com a repercussão do caso, o perfil oficial do supermercado Dia fez um
comentário no seu post se desculpando e informando que não compactuava com tais
posturas. Como você percebe a mudança de comportamento das empresas por conta
das redes sociais?
A empresa paga alguém para escrever um belo texto
para justificar o injustificável, não fazem nada de concreto para mudar a
situação. As redes sociais refletem o comportamento racista das empresas na
vida real eu não percebo mudanças.
MP:
Após isso você recebeu algum posicionamento sobre as averiguações e medidas
tomadas?
Não mesmo
MP:
Como é a sua militância no Movimento Negro? Desde quando vêm militando nessa
área?
Desde criança sempre fui louca com a revista Raça
Brasil e em 2010 quando eu ainda estava no terceiro período de jornalismo
passei a integrar a equipe de colaboradores. Momento esse que voltei minha
atenção e passei a conhecer o movimento de BH. Já em 2012 integrei a equipe do
Festival de Arte Negra de Belo Horizonte aí me apaixonei e nunca mais saí.
MP:
Como você avalia as conquistas do movimento negro nos últimos anos?
Sinceramente eu não sei, ultimamente digo nos
últimos cinco anos não tenho visto muitas conquistas. Estou muito insatisfeita
com os casos recorrentes de racismo e de pouquíssima punição.
MP:
Como é ser uma jornalista e publicitária negra no Brasil?
Ser jornalista e publicitária é muito bom, o difícil
é ser mulher negra em um país machista e racista.
MP:
Como você avalia as políticas públicas voltadas à promoção da igualdade e do
enfrentamento ao racismo?
As políticas são boas o que falta é fazer com elas
sejam compridas. Por exemplo, racismo e todos os criminosos que praticam esse
crime estão impune.
MP:
Qual o conselho que você deixa para as pessoas que se encontram diante da mesma
situação que você passou no supermercado Dia?
Não aceite ser tratado de forma diferente em razão
da sua cor da pele. A luta contra o racismo é diária e ele nos atinge nos
lugares mais comuns, nas escolas, comércios, transportes e espaços públicos. Se
você for vítima de constrangimento, humilhação e distinção em razão da sua cor
de pele denuncie. Racismo é crime e se você deixar pra lá está sendo conivente.
Não é fácil denunciar, é um momento difícil, mas
você é forte e consegue. É só discar 190 no exato momento em que sofrer o crime
e solicitar uma viatura policial deixando claro para a telefonista da polícia
militar que você foi vítima de racismo. Depois tente identificar pessoas que
presenciaram o crime e solicite a elas nome completo, RG e telefone (você vai
precisar de testemunhas). Assim que a viatura policial chegar faça o boletim de
ocorrência.
Um dia após
fazer o Boletim vá até ao Ministério Público no setor de direitos humanos e
faça uma representação contra o criminoso e depois faça outra representação na
delegacia da polícia civil. Quando você for fazer a representação leve com você
os nomes das testemunhas e o B.O., é importante levar com você um acompanhante
para te dá apoio moral.
Se não queremos conviver com o racismo amanhã, temos
que acabar com ele hoje!