domingo, 12 de maio de 2013

Por Celso Athayde: SETOR F



Desde que me entendo por gente e mesmo não sendo um grande conhecedor em economia, minha experiência como camelô vem me mostrando que o modelo empresarial no Brasil tem sido o responsável direto por muitos dos problemas sociais que vivemos. Chegar a essa conclusão não é difícil. Imagino que todos os líderes sociais, intelectuais, políticos, religiosos, empresariais, assim como os "buchas" de todos os setores também concordam com isso. O ponto central dessa questão é: quais as sugestões e alternativas temos para apresentar? Percebo que, ao longo dos anos, a Economia Social vem ganhando bastante expressão. Seus objetivos passam necessariamente pela solidariedade e pelo desenvolvimento integrado da comunidade. Ela tem contribuído muito com o Estado em suas ações e infelizmente até o substitui, em alguns casos extremos. Mas é claro que esse não é o seu papel. Acredito que a função principal seja a de construir alternativas e, até no limite, ser um prolongamento do Estado na implementação de suas políticas sociais. Em síntese, a Economia Social é o que transforma os valores e até os costumes de um ambiente e muda a vida das pessoas em um país capitalista.



Pensando nisso, quero propor um novo debate para esse momento, um novo pensamento na direção da economia da favela, que estou batizando de Setor F. O assunto merece atenção no que diz respeito ao fenômeno de renda dos moradores desse setor. O PIB de muitos países, o da Bolívia, por exemplo, é menor que o volume do movimento da economia das comunidades brasileiras. É importante perceber que não estou falando somente das periferias, e, sim, das favelas, que existem inclusive nas periferias. Caso contrário, esse número seria muito maior e estaríamos falando em quase 70% da população. É hora de todos atentarem para esse “velho” Setor F: os do asfalto ou os das favelas. Esse exercício serve, inclusive, como um dos caminhos para demover o preconceito. Até aqui, os argumentos que muitos usavam para não se aproximarem das favelas foram a geografia complexa dos terrenos, que dificulta o acesso e demanda supostos grandes investimentos, ou o receio do poder paralelo. O fato é: precisamos promover o encontro dos empreendedores desses dois mundos! Precisamos definitivamente assumir o desafio que é a geração de um valor compartilhado em que podemos revolucionar a administração, gestão e o planejamento dessa economia considerada ainda por muitos como paralela, por ser parte de um ambiente que tem uma cultura própria e seus próprios códigos de existência e desenvolvimento. Esse território que pulsa economicamente e que exige investimentos e legalidade plena. Esse mundo que quer ser incluído em todos os seus aspectos, e assim transpor todas as fronteiras que ainda existem.

Para provar que é perfeitamente possível, acabamos de criar a Favela Participações S/A (Favela Holding), um grupo integrado por 20 empresas que tem o foco de atuação nas favelas brasileiras. Trata-se se uma sociedade entre a Favela Holding e grandes empresas dos mais diversos setores. Essa sociedade dará vida a empresas de eventos, agência de viagens, publicidade, MMA, shoppings, fábricas de móveis, editora, instituto de pesquisa, distribuidora, expansão de negócios e mídia, só para citar algumas. A idéia central é que o empreendedor tenha a real percepção do retorno financeiro que essas comunidades irão trazer para o seu investimento. Em contrapartida, quero que o morador da favela tenha oportunidade de ser visto pelos empresários como protagonista desse processo de construção compartilhada. Ou seja, como sócios, de fato. Isso será feito pela primeira vez nessa relação comercial. Para que esses moradores possam executar esse papel de protagonismo, deverão se preparar para co-gerenciar seus negócios, para gerar lucros e para manter esse lucro dentro da própria favela, com o objetivo de promover uma melhor qualidade de vida ao lugar. Alguns parceiros já começaram a colaborar com esse processo de formação, como Fundação Dom Cabral e SEBRAE-RJ.

Acredito que a grande revolução brasileira será o avanço da economia nas favelas, uma sociedade de 12 milhões de pessoas. Do contrário, alardearemos que somos a sexta economia mundial, comemoraremos em breve que alcançamos a terceira, mas, se as favelas não se desenvolverem, só aumentaremos a distância entre o Brasil que cresceu e o outro Brasil que sucumbiu.

Exatamente por isso, resolvi investir em uma nova lógica de trabalho. O objetivo não é fazer nenhuma reparação ao trabalho que fiz com a CUFA até aqui, pois se tivesse que fazer novamente, eu faria exatamente a mesma coisa. Deixamos a CUFA como a instituição de maior capilaridade do país e uma das mais respeitadas que conheço. Mas, por outro lado, é preciso refletir o quanto é importante as organizações não virarem apenas um balcão de projetos. As ações não podem existir somente para fortalecer o ego das organizações e de seus líderes. Penso que um movimento social deve ser pautado pelo desenvolvimento dos coletivos, sejam eles parte ou não dessas organizações, sobretudo quando os recursos são públicos. Isso não é nem de longe uma crítica ao que foi possível fazer até aqui, afinal, nem sempre escolhemos as formas. Muitas das vezes, nos limitamos a seguir o fluxo.

A decisão de deixar a gestão da CUFA, apesar de me engajar em um projeto comercial que tem a mesma direção, pode não ser visto de forma natural por algumas pessoas. Novidades, sejam elas em que âmbito forem, sempre geram espantos. Mas, enquanto eu viver, serei um inquieto que tentará se divertir surfando no olho do furacão. Precisamos seguir novos rumos, trilhar na direção do que acreditamos. E claro, continuar pagando o preço por sermos vanguarda em muitas ações. Lembro, por exemplo, de quando fizemos o primeiro grande show em uma favela no Rio, talvez no Brasil. Foi na Cidade de Deus, no ano de 2000, mais precisamente em uma noite de Natal. Produzimos um mega show, com direito a muitas lágrimas dos artistas e do público. Um encontro memorável entre a Cidade de Deus e Caetano Veloso, Djavan, Dudu Nobre e Cidade Negra. A mídia fez desse histórico acontecimento um caso de polícia. Mesmo assim, o fato possibilitou a leitura da sociedade e do poder público de que a favela também era um lugar onde os grandes eventos culturais pudessem e devessem ser realizados. Até hoje, fazemos grandes eventos em favelas, com parceria de muitos que nos criticaram na época. O importante disso tudo é constatar que, hoje, outros tantos parceiros fazem esse tipo de ação e com sucesso. Outro caso emblemático foi quando fizemos o filme e o livro ‘Falcão: Meninos do Tráfico’. Lembro que, apesar de ter recebido prêmios em mais de 20 países, de ter recebido as homenagens mais importantes do país, o Bill e eu também fomos processados e acusados de fazer apologia ao crime e associação ao tráfico. Resistimos a tudo e seguimos em frente.

Felizmente, hoje essa resistência é reconhecida como um marco que possibilita muitas organizações e pessoas a se comunicarem com as favelas das mais variadas formas e até mesmo com o tráfico, com o objetivo de mediação de conflitos. Foi assim, em 2001, quando fizemos o primeiro projeto de formação de agentes da lei. A CUFA, em parceria com o Ministério da Justiça, qualificou guardas municipais para melhor se relacionarem com os jovens das favelas.
Eu poderia citar muitos outros momentos em que fomos considerados vanguarda na relação com comunidades, mas isso já passou e o futuro é o que nos desafia. Em nome desse desafio, lancei mão dessas relações para criar essa que é a primeira holding de favelas do mundo: a Favela Participações S/A.

Quero trazer à tona a discussão sobre a economia da favela, o Setor F: uma discussão sobre o que acredito ser a receita ideal do bolo capitalista, com muitos ingredientes dessa nossa economia social e compartilhada. Baseado no que construí, nas idéias que propaguei, em tudo o que acredito, e vindo de onde vim, eu precisava criar mecanismos para que o nosso desenvolvimento como conjunto fosse viável. E é aí que trago essa reflexão para essa nova mentalidade.

É importante que esses grandes empresários pensem além dos recursos disponíveis nas favelas. É preciso pensar no desenvolvimento de seus moradores, tanto para promover a empregabilidade em massa quanto o empreendedorismo. Para que os habitantes das favelas alcancem esse objetivo, antes de tudo, é preciso que os empresários percebam que uma sociedade entre eles seria mais do que um modelo que revolucionaria a economia das favelas. Deveriam considerar que seria o único modelo sustentável e que jamais foi testado coletivamente.

Para destacar os efeitos do Setor F, vou lembrar um pouco dos outros três setores. O primeiro setor: o privado capitalista, com fins lucrativos. O segundo: o setor público, que visa satisfazer o interesse geral da população. E o chamado terceiro setor, que é parte integrante da Economia Social e está ligado à economia solidária. Na esfera dessa Economia, estão o associativismo, o cooperativismo e o mutualismo como formas de organização da atividade produtiva. Mas é importante pontuar algumas semelhanças e diferenças entre esse novo Setor F e o terceiro setor, que é uma categoria que traduz certas práticas que podem ser aplicadas em qualquer lugar. O Setor F não. Esse é bem específico: focaliza territórios chamados favelas (chamados pelo IBGE de aglomerados sub normais). O terceiro setor combina geração de lucro com benefícios sociais. O Setor F faz dessa combinação um projeto de afirmação política e cultural de comunidades. Acredito que as favelas se tornarão mais poderosas, em todos os sentidos, e mais capazes de pensar criticamente sobre si mesmas e sobre o país, na medida em que passarem pela experiência educativa, de aprendizado e desenvolvimento, e de tornarem-se protagonistas de um processo de interesse pessoal e coletivo. Visto por esse prisma, o Setor F se torna qualitativamente diferente do terceiro, porque o todo é maior do que a soma das partes. Por isso, o Setor F não é apenas a soma do terceiro setor mais cultura e política. Ele converte-se em outro tipo de experiência coletiva. Isso impacta a própria dimensão econômica do que se chama Setor F, porque, se é preciso pensar o significado político e cultural de cada empreendimento, a avaliação não pode ser apenas econômica e social, como seria naturalmente no terceiro setor, do qual eu faço parte há quase 20 anos.

Daí a idéia de um shopping. Um shopping é um grande símbolo capitalista que pode ser apropriado e ressignificado, mantendo vários de seus aspectos clássicos como: lojas de marca, escadas rolantes, ar condicionado, praças de alimentação e um astral imponente. Nesse novo modelo, esse mesmo shopping pode construir novos aspectos também, como a presença das lojas locais que vão derramar produtos fabricados na própria favela, a exposição das mais diversas artes consumidas na comunidade ou ainda a relação entre seus próprios pares, na medida em que o ponto chave estará na relação entre os vendedores e clientes da própria favela, eliminando os históricos preconceitos. Outro ponto é a relação entre fraqueado e franqueadores, já que as marcas só garantem espaços no Favela Shopping se for via Franquia Social, ou seja, o franqueador investe em um empreendedor da favela, por ele identificado. Se por um lado haverá um investimento social ao ofertar a franquia, por outro haverá um ganho por muitos anos nesse mesmo espaço inovador. Para que esse modelo - de Franquia Social - seja aplicado, será preciso um processo de formação, qualificação e acompanhamento da gestão pelos que têm experiências em seus respectivos ramos de atuação. Mais do que isso: 100% dos funcionários do empreendimento deverão ser moradores da favela. Isso vai melhorar a qualidade de vida da população já que, além desses trabalhadores estarem menos tempo em trânsito, portanto mais tempo com seus familiares, o projeto vai gerar renda local e fazer com que esses valores permaneçam ali. Mas não paro por aqui. Como se não fosse bastante esse impacto positivo na economia da favela, outro aspecto, no caso dos shoppings, é a obrigatoriedade da criação de um projeto visual para todo o comércio no entorno do empreendimento, além de oferecer cursos de negócios para todos os comerciantes locais, visando o desenvolvimento dos interessados. Até mesmo o Estado tem a chance de pensar incentivos para estimular a o crescimento de empreendedores nessas comunidades.

Estou convicto de que estamos iniciando um processo empreendedor jamais visto! O tempo nos mostrou que nenhum desses setores foi capaz de resolver, ou mesmo entender, as mais diversas dimensões da economia das favelas. O grande ensinamento que fica e a grande reflexão que todos devemos fazer é: ou dividimos todas as riquezas que todos nós geramos, ou, infelizmente, seremos obrigados a continuar convivendo com as consequências da miséria que os concentradores de renda têm gerado ao longo da história. E todos temos a chance de mudá-la. A hora é agora!

CELSO ATHAYDE
Diretor Executivo da Favela Participações S/A

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