segunda-feira, 30 de março de 2015

De volta ao ofício.

Após dias de silêncio, retorno o meu ofício: comunicar. Foram dias em busca de proteção e também para as atenções permanecerem voltadas às famílias mais atingidas por uma onda de violência policial em Salvador, legitimada pelo governador do estado, Rui Costa, e diversos segmentos da imprensa tradicional.

Quem acompanhou nas ruas, becos e vielas da cidade sabe o nível de tensão e perigo que muitos enfrentaram. Não é algo para ser relativizado. Até moradores de comunidades passaram a incorporar o bordão que legitima o assassinato dos seus filhos: “quem defende bandido é bandido também”.

Diversos movimentos sociais e ativistas da cidade se mobilizaram para denunciar a atuação policial. Sem dúvidas, à dianteira está a Campanha Reaja!. O meu papel foi exercer o ofício de comunicar. Mas quando não podemos falar sequer, significa que o genocídio à população negra assume com êxito seu lado simbólico.

Muitos amigos e organizações entenderam a gravidade quando, no caminho de casa para o ponto de ônibus, um Policial Militar fardado me parou e proferiu as palavras “É melhor você segurar seus dedos e parar de criticar quem realmente faz a segurança na comunidade, pois pode acabar ficando sem eles”. Não era uma questão pessoal, e sim coletiva em jogo.. O cerceamento à liberdade de expressão não é algo para darmos um passo atrás.

Depois de 13 assassinatos no Cabula, no dia 06 de fevereiro, os dias seguintes foram marcados por mais duas mortes em Cosme de Faris, e uma mega operação na comunidade de Sussuarana resultou no assassinato do jovem Bruno Ramos, cuja família é toda conhecida por mim. A versão apresentada pela PM, nos dois primeiros casos, é a de que houve troca de tiros. Os policiais se utilizaram do AUTO DE RESISTENCIA para legitimar e justificar o bárbaro cenário ocorrido na comunidade. No terceiro caso, o do Bruno Ramos, a operação não foi divulgada, somente no dia seguinte um veículo de mídia deu o título de EX-PRESIDIÁRIO para o Bruno, na tentativa de justificar a sua morte. (http://migre.me/p35oo).

Amigos foram mandando notícias sobre o que estava acontecendo na minha comunidade, Sussuarana, bem como no entorno, e assim consegui fazer uma cobertura parcial. No outro dia nenhum outro veículo de mídia local deu qualquer nota sobre a operação em Sussuarana. Diante disso, resolvi escrever um texto para o site Ponte Jornalismo (http://migre.me/p35GK) retratando a minha realidade, vulnerável às mortes que estavam acontecendo, muitas delas silenciadas, a exemplo da de Bruno Ramos.

Acompanhar e denunciar a violência não são uma novidade na minha trajetória. O primeiro texto que escrevi, quatro anos atrás (http://migre.me/p34BI), relata e denuncia a execução de um jovem amigo. Um dos vários que perdi durante estes anos.

O Mídia Periférica é uma ferramenta criada para contrapor o que a mídia tradicional teimava em expor como perfil único das periferias. Em quatro anos e meio de atuação, conseguimos ir para além dos muros da comunidade, trouxemos novos olhares para as coisas bacanas existentes no nosso dia a dia, mas nunca esquecendo nosso primeiro slogan “Dar Voz a Periferia”. Nas atividades que realizamos não menosprezamos o trabalho de nenhum outro coletivo que atua nas mesmas frentes. A nossa meta é contrapor a mídia sensacionalista e criar estratégias para o enfrentamento à violência que nos atinge, em sua maioria, pelos braços armados do Estado. Sabemos exatamente onde está o inimigo.

Nestes que fiquei em silêncio pude pensar e articular uma maneira de voltar seguro para minha residência ao lado da minha família.. Neste período tive a ajuda de diversos amigos. Não tive nenhuma ajuda de órgão governamental nesse sentido.

A organização de Direitos Humanos – Projeto Legal, me deu total suporte jurídico. Esse respaldo ocorreu em razão de minha participação no Projeto “Jovens e Adolescentes em Ação” como articulador. Quando tomaram ciência da situação em que me encontrava, deram os encaminhamentos jurídicos e administrativos necessários.

Também agradeço a compreensão dos profissionais de imprensa e organizações que respeitaram meu silêncio nesse período. Foram diversos pedidos negados.

As redes de defesa são importantes e acredito que as comunidades devem se empoderar das ferramentas que já utilizam no dia a dia para a auto defesa de todos. Por isso, deixo aqui como proposta: desenvolver mais a utilização das ferramentas tecnológicas por meio de redes sociais para que as pessoas possam denunciar, registrar e inibir ainda mais a violência que é praticada contra a juventude negra nas periferias.

Temos que construir nossas práticas, e reivindicar o fortalecimento do Plano Juventude Viva de Enfrentamento da Violência Contra a Juventude Negra, como forma de impulsionar o reconhecimento por parte do Estado em assumir que de fato existe um genocídio em curso. Não é preciso ir muito longe para constatar essa realidade. A votação da PEC 171/1993, que altera a redação do artigo 228 da Constituição Federal, reduzindo de 18 para 16 a maioridade penal, é o retrato mais fiel do retrocesso que estamos vivendo na conjuntura atual; quando não somos mortos, somo encarcerados e excluídos da sociedade.

Os que convivem nas ruas, becos e vielas de Salvador sabem que mais assassinatos e operações abusivas da polícia continuam a ocorrer, e podem estar até se aperfeiçoando para não deixar os mesmos rastros já denunciados. As formas de nos silenciar por meio do aparato estatal e suas políticas também continuam presentes. Sigamos em frente, juntos, pois é essa a melhor forma de sobrevivermos.


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